terça-feira, outubro 25, 2005

 

PIRA EM SAMPA

Hoje está chovendo bastante aqui.
Ontem fez um puta calor e agora as ruas da cidade estão molhadas e os automóveis passam deixando rastros sonoros no asfalto.
Desde maio deste ano, sou o único artista do interior selecionado por edital da Secretaria de Estado da Cultura, para integrar o projeto ATELIER AMARELO (atelieramarelo.blogspot.com), atelier residência que visa o desenvolvimento de projetos artísticos relacionados à região central da capital, integrando a revitalização do centro de São Paulo.
Como piracicabano acostumado às tardes bucólicas à beira do rio, ouvindo pássaros cantando, vendo os bonecos do Elias, trocando histórias com pescadores no barranco, tocando viola nos bares da Rua do Porto, essa experiência tem sido bastante intensa para mim, muito criativa, embora dolorosa.
Explico.
A região onde se encontra instalado o Atelier é a famosa “cracolândia”, pedaço degradado do centro, onde abundam os traficantes e consumidores dessa porcaria de droga que é o crack.
Parece aquela cena do clip de Michael Jackson, o Thriller, onde aparecem aqueles seres semimortos.
É aquela cena.
As pessoas envolvidas com o crack se degradam rapidamente, ficando completamente sujas, andando descalças, vestindo andrajos, dormindo nas ruas, consumindo essa merda à luz do dia descaradamente.
A polícia de vez em quando faz uma batida, mas não existe ação social efetiva do governo nem da prefeitura a respeito disso.
Desde que estou aqui, e eu MORO aqui, bem acima do local de maior consumo de crack, já vi inúmeras ações policicais, mas nenhuma ação de assistentes sociais para recuperação dessas pessoas.
Além de adultos, a presença de crianças consumindo crack é imensa.
É um cenário deprimente.
E esse é o tema do meu projeto proposto, que se chama NA RUA.
Meu trabalho tem sido retratar essas personagens que circulam por aqui.
Alguns trabalhos podem ser vistos no blog citado acima.
A relação da arte com a tristeza da humanidade sempre foi intensa.
É difícil conviver com isso.
Ao mesmo tempo que procuramos beleza na obra em si, o discurso é sobre a feiúra que se nos apresenta.
É necessário um distanciamento filosófico da realidade.
Como se fosse o artista um ET pousado num planeta estranho, fazendo registros de seus habitantes degradados.
Estarei aqui até 20 de dezembro deste ano, integrando a equipe pioneira de artistas deste projeto, e o atelier é aberto à visitação pública.
São projetos muito interessantes, todos questionando a relação da cidade com o ser humano.
Vale a pena ser visitado.
Enquanto isso, continua chovendo na cracolândia, e os meninos dormindo sob as marquises esperam mais uma dose para diminuir um pouco a sua dor de viver essa subvida proporcionada por uma sociedade capitalista filha da puta, que não se importa com a sua existência, com a sua recuperação, com a sua dignidade.

Chico Coelho
(texto publicado no jornal GIRAPIRA, de Piracicaba, em sua terceira edição)

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